[ breviário de decomposição ]

quinta-feira, 18 de maio de 2006

Sobre Farnese de Andrade


Na última terça-feira, durante o intervalo do almoço, em casa, enquanto surfava com o controle da TV de um canal pra outro, fui arrebatado por um programa exibido na TVS sobre o artista mineiro Farnese de Andrade, apresentado por Charles Cosac (um dos editores da Cosac & Naifi). Até então nunca havia ouvido falar sobre ele, mas fiquei totalmente petrificado pelo diferencial do seu trabalho. O programa era sobre uma mostra da obra daquele artista, ocorrrida no ano passado no CCBB-SP. Reproduzo a seguir texto divulgado no site do CCBB sobre a referida exposição:

Medo, angústia, espanto e tristeza são alguns dos sentimentos despertos quando se está diante de uma obra do pintor, desenhista, escultor e gravurista Farnese de Andrade. Mineiro de Araguari, Farnese ganhou inúmeros prêmios com seus desenhos e gravuras, mas nunca teve o devido reconhecimento enquanto vivo. Sua morte aos 70 anos, em 1996, mal foi noticiada pelos jornais. Poucas galerias e museus se interessaram em mostrar o universo contundente deste artista, até que o historiador Charles Cosac, fundador da editora Cosac Naify e amigo de Farnese, resolvesse lançar um livro com 342 imagens das obras do artista e texto do crítico Rodrigo Naves. Houve, então, uma retomada de interesse pela produção do artista mineiro e começaram a surgir algumas exposições recuperando a obra de Farnese, mas nenhuma delas tão grande quanto a mostra em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo.
São 125 objetos espalhados por cinco salas e pelo pátio da instituição, reunidas pelos curadores Charles Cosac e Jô Frazão, que também participou da pesquisa e seleção das obras para o livro sobre Farnese, lançado em 2002. "A escolha das obras para a exposição no CCBB foi feita quase toda em cima do livro. Acrescentamos algumas inéditas, que nunca foram expostas, como é o caso das obras da coleção de Ricardo Cravo Albin (jornalista e pesquisador) e de Ana Letícia (artista plástica)", explica a co-curadora e historiadora Jô Frazão.
Farnese de Andrade iniciou sua carreira, em 1945, como aluno do pintor Guignard (1896-1962). Após se dedicar ao desenho e à gravura, passou a realizar, a partir de 1964, as grandes assemblages, objetos em que juntava diversos elementos, como oratórios, fotografias e detritos que recolhia pelos antiquários e pelas praias do Rio de Janeiro, para onde se mudou, em 1948, em busca de tratamento de uma tuberculose. Em depoimentos, Farnese dizia que essa atividade, no início, funcionava como uma terapia ocupacional. Depois, tornou-se sistemática e com o perfil de uma pesquisa organizada. Foi então que o lixo praiano e da rua, como conchas, madeira, oferendas de macumbas, imagens de santos, objetos plásticos, bonecas, entre outros passaram a ser a matéria-prima de suas obras. Como suporte, Farnese usava gamelas, oratórios, armários e caixas de resina adquiridos não só nas ruas como em antiquários, feiras e depósitos de demolição. Com a matéria-prima em mãos, ele valorizava diferentemente cada material, dando novas formas e significados aos elementos.
Embora também tenha se destacado como desenhista e gravador, foi com os objetos que Farnese ficou mais conhecido no meio das artes plásticas e é esta vertente de sua obra a principal atração da exposição. "A idéia da concepção foi não mostrar os desenhos, mas sim os objetos, que são os que mais causam impacto entre os trabalhos de Farnese e foram os menos vistos pelo público", diz Jô Frazão, que conheceu a obra do artista mineiro nos anos 80, por meio de um curta-metragem sobre Farnese, que será exibido continuamente durante a exposição. O filme foi realizado em 1970 pelo cineasta Olívio Tavares de Araújo. "Fiquei com um fascínio absoluto e ao mesmo tempo com medo. Nunca imaginei que pudesse existir um tipo de obra assim. Ele tem muitos trabalhos que são muito fortes e impactantes. Foi uma punhalada. O que chama atenção no trabalho de Farnese é que ele é muito violento, desesperador, mas depois a gente vai se acostumando".
O universo artístico de Farnese é impregnado de erotismo e religiosidade e também carregado de referências pessoais. Seus temas mais constantes são relacionados à dualidade entre a vida e a morte. Alguns críticos de arte atribuem ao caráter extremamente autobiográfico de sua obra e ao seu temperamento difícil o fato de não ter conseguido alcançar grande reconhecimento. Seus trabalhos com bonecas e santos mutilados causam estranheza e repulsa em alguns ao mesmo tempo em que provoca fascínio e paixão. "Ou você ama a obra de Farnese ou odeia, não tem meio termo", afirma Jô Frazão.
Farnese percebeu que todo trabalho artístico deve causar um choque emocional quando entrou em contato com as obras do pintor Giorgio Morandi (1890-1964), uma de suas principais influências - embora eles tenham realizado trabalhados distintos - e para quem dedicou algumas de suas peças. "Era muito jovem quando sofri um impacto ao ver as obras de Giorgio Morandi expostas em Sala Especial da 2ª Bienal Internacional de São Paulo. Passei o dia inteiro vendo sair de todas as suas obras aquele silêncio, aquela pureza, aquela perfeição. Então, eu creio que esse choque emocional, sofrido por mim em face das obras de Morandi, todo e qualquer artista criador deverá proporcionar a si mesmo em primeiro lugar", disse o artista em depoimento em 1976, registrado posteriormente no livro Gravura: Arte Brasileira do Século XX, editado pela Cosac & Naify em 2000.