Reflexões (ou inflexões).
Tenho aqui uma poesia do Vinícius de Moraes para postar, uma poesia que até... sei lá! Deixem-me logo contar uma breve estorinha... Uns dois anos atrás eu comprei uma coletênea póstuma dele num sebo. O Vinícius, vocês sabem, né? Poeta nato, boêmio, amante da noite e das mulheres (não sei como conseguia conciliar isso com seu trabalho no Itamaraty...). Ele se apaixonava por elas como a gente aqui troca de roupa... Mas as amava profundamente (isso é importante), com toda as forças de sua alma. Cada uma delas... Invejo esse cara! Queria ter a sua capacidade de verter para o papel os sentimentos e inquietações. Ai, ai... Mas, como ia lhes dizendo, logo nas primeiras páginas daquele livrinho dele vi um poema que se chama O Haver. Foi decisivo para a compra do danado! (Embora obviamente não desmereça o restante da obra do Vinícius, muito pelo contrário). Caracoles... É uma das coisas mais lindas que já li. Uma pequena obra de arte. Me arrepio quando o leio... Esse poema toca a qualquer um que tenha um pouco de... sei lá... sensibilidade??? Não, não sei bem se seria isso... Já fui taxado de não tê-la... Portanto, não sei bem o que é... Mas, parafraseado um pouco o meu querido Drummond, eu não devia dizer a vocês, mas num momento como este, essa lua..., esse uísque... botam a gente comovido como o diabo! Talvez nem deveria estar fazendo isso, mas, dane-se! O que importa na vida é o momento, ou os momentos vividos. Isso ninguém rouba da gente... Aliás, confesso a vocês que além do uísque um bom charuto está me ajudando a relaxar um pouco, a pôr minhas parcas idéias em ordem... Um Siboney. Conhecem? Até que esse é bom... Quando o comprei, preferia que fosse um José Piedra (um autêntico habano, o outro só o é no miolo), mas este estava em falta... Seria por causa do estado de saúde d'El Comandante? Não creio... Penso e espero que não vou perder muitos anos de vida por conta do (inexistente) vício, mas, cá entre nós, é bom cacete! Voltando ao assunto deste post, eis aí o tal poema que imagino vocês já conhecerem (declamem em voz alta e me digam se não é magnífico):
O Haver
Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.
Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.
Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.
Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...
Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.
15.04.1962
(Vinicius de Moraes, Jardim Noturno: poemas inéditos, Cia. das Letras: São Paulo, 1993, p. 17).
Creio já haver (desculpem o trocadilho, mas foi inevitável) postado esse poema, mas sua indescritível beleza e plasticidade fazem com que eu faça isso inúmeras vezes, sempre que o meu estado d'alma permitir e quiser.#
1 Comments:
Ed, foi por isso que o Vinícius foi convidado a deixar o quadro Itamarateca... era muita babação de ovo para um ébrio! hehehe
Sim, Vinícius nasceu com esse dom de traduzir o intraduzível.
E publique quantas vezes achares necessário, afinal de quem é esse barraco aqui??
Beijo
By Lu, at quinta-feira, 11 de janeiro de 2007 às 17:37:00 BRST
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